Texto de Daniel Oliveira para o Expresso:
"Cavaco Silva apresenta hoje a sua recandidatura. Foi ministro quando eu tinha 11 anos. Pode sair da Presidência quando eu tiver 46. Ele é o maior símbolo de tantos anos perdidos. E aqui se fala das suas cinco encarnações.
Sem contar com a sua breve passagem pela pasta das Finanças, conhecemos cinco cavacos. Mas todos os cavacos vão dar ao mesmo.
O primeiro Cavaco foi primeiro-ministro.
Esbanjou dinheiro como se não houvesse amanhã. Desperdiçou uma das
maiores oportunidades de deste País no século passado. Escolheu e
determinou um modelo de desenvolvimento que deixou obra mas não preparou
a nossa economia para a produção e a exportação. O Cavaco dos patos
bravos e do dinheiro fácil. Dos fundos europeus a desaparecerem e dos
cursos de formação fantasmas. O Cavaco do Dias Loureiro e do Oliveira e
Costa num governo da Nação. Era também o Cavaco que perante qualquer
pergunta complicada escolhia o silêncio do bolo rei. Qualquer debate
difícil não estava presente, fosse na televisão, em campanhas, fosse no
Parlamento, a governar. Era o Cavaco que perante a contestação de
estudantes, trabalhadores, polícias ou utentes da ponte sobre o Tejo
respondia com o cassetete. O primeiro Cavaco foi autoritário.
O segundo Cavaco alimentou um tabu: não se
sabia se ficava, se partia ou se queria ir para Belém. E não hesitou em
deixar o seu partido soçobrar ao seu tabu pessoal. Até só haver Fernando
Nogueira para concorrer à sua sucessão e ser humilhado nas urnas. A
agenda de Cavaco sempre foi apenas Cavaco. Foi a votos nas presidenciais
porque estava plenamente convencido que elas estavam no papo. Perdeu. O
País ainda se lembrava bem dos últimos e deprimentes anos do seu
governo, recheados de escândalos de corrupção. É que este ambiente de
suspeita que vivemos com Sócrates é apenas um remake de um filme que
conhecemos. O segundo Cavaco foi egoísta.
O terceiro Cavaco regressou vindo do silêncio.
Concorreu de novo às presidenciais. Quase não falou na campanha.
Passeou-se sempre protegido dos imprevistos. Porque Cavaco sabe que
Cavaco é um bluff. Não tem pensamento político, tem apenas um repertório
de frases feitas muito consensuais. Esse Cavaco paira sobre a política,
como se a política não fosse o seu ofício de quase sempre. Porque tem
nojo da política. Não do pior que ela tem: os amigos nos negócios, as
redes de interesses, da demagogia vazia, os truques palacianos. Mas do
mais nobre que ela representa: o confronto de ideias, a exposição à
critica impiedosa, a coragem de correr riscos, a generosidade de pôr o
cargo que ocupa acima dele próprio. Venceu, porque todos estes cavacos
representam o nosso atraso. Cavaco é a metáfora viva da periferia
cultural, económica e politica que somos na Europa. O terceiro Cavaco é vazio.
O quarto Cavaco foi Presidente. Teve três
momentos que escolheu como fundamentais para se dirigir ao País: esse
assunto que aquecia tanto a Nação, que era o Estatuto dos Açores; umas
escutas que nunca existiram a não ser na sua cabeça sempre cheia de
paranóicas perseguições; e a crítica à lei do casamento entre pessoas do
mesmo sexo que, apesar de desfazer por palavras, não teve a coragem de
vetar. O quarto Cavaco tem a mesma falta de coragem e a mesma ausência
de capacidade de distinguir o que é prioritário de todos os outros.
Apesar de gostar de pensar em si próprio como um não
político, todo ele é cálculo e todo o cálculo tem ele próprio como
centro de interesse. Este foi o Cavaco que tentou passar para a imprensa
a acusação de que andaria a ser vigiado pelo governo, coisa que numa
democracia normal só poderia acabar numa investigação criminal ou numa
acção política exemplar. Era falso, todos sabemos. Mas Cavaco fechou o
assunto com uma comunicação ao País surrealista, onde tudo ficou
baralhado para nada se perceber. Este foi o Cavaco que achou que não
devia estar nas cerimónias fúnebres do único prémio Nobel da literatura
porque tinha um velho diferendo com ele. Porque Cavaco nunca percebeu
que os cargos que ocupa estão acima dele próprio e não são um assunto
privado. Este foi o Cavaco que protegeu, até ao limite do imaginável, o
seu velho amigo Dias Loureiro, chegando quase a transformar-se em seu
porta-voz. Mais uma vez e como sempre, ele próprio acima da instituição
que representa. O quarto Cavaco não é um estadista.
E agora cá está o quinto Cavaco. Quando
chegou a crise começou a sua campanha. Como sempre, nunca assumida. Até o
anúncio da sua candidatura foi feito por interposta pessoa. Em campanha
disfarçada, dá conselhos económicos ao País. Por coincidência, quase
todos contrários aos que praticou quando foi o primeiro Cavaco. Finge
que modera enquanto se dedica a minar o caminho do líder que o seu
próprio partido, crime dos crimes, elegeu à sua revelia. Sobre a crise e
as ruínas de um governo no qual ninguém acredita, espera garantir a sua
reeleição. Mas o quinto Cavaco, ganhe ou perca, já não se livra de uma
coisa: foi o Presidente da República que chegou ao fim do seu primeiro
mandato com um dos baixos índices de popularidade da nossa democracia e
pode ser um dos que será reeleito com menor margem. O quinto Cavaco não tem chama.
Quando Cavaco chegou ao primeiro governo em que participou eu tinha 11 anos. Quando chegou a primeiro-ministro eu tinha 16. Quando saiu eu já tinha 26. Quando foi eleito Presidente eu tinha 36. Se for reeleito, terei 46 quando ele finalmente abandonar a vida política.
Que este homem, que foi o politico profissional com mais tempo no
activo para a minha geração, continue a fingir que nada tem a ver com o
estado em que estamos e se continue a apresentar com alguém que está
acima da politica é coisa que não deixa de me espantar. Ele é a política em tudo que ela falhou. É o símbolo mais evidente de tantos anos perdidos."
Nem mais ...